



BUGIGANGA o nosso novo espetáculo de teatro de rua esteve presente na IX edição da Mostra Gargalhadas na Lua no Bairro Padre Cruz em Carnide.
Deixamos um belíssimo texto de Fernando d’Oliveira sobre esta apresentação.
𝗚𝗔𝗥𝗚𝗔𝗟𝗛𝗔𝗗𝗔𝗦 𝗡𝗔 𝗟𝗨𝗔: 𝗢 𝗣𝗥𝗜𝗠𝗘𝗜𝗥𝗢 𝗧𝗘𝗔𝗧𝗥𝗢 𝗗𝗢 𝗥𝗔𝗙𝗔𝗘𝗟
Foi hoje mesmo, durante a tarde!
Estava a montar o som quando o vi aproximar-se. Tinha uns 8 anos, magro e curioso, daqueles meninos que trazem nos olhos mais perguntas do que respostas. O bairro social onde vivia não lhe oferecia muitos palcos além da rua e uma ou outra Associação mais consciente da importância do trabalho da integração social – os parcos recursos da família eram também um obstáculo aos horizontes; talvez até o maior -, mas o largo hoje ia transformar-se em sala de espetáculo.
— O que vai acontecer aqui? — perguntou-me, enquanto eu enroscava cabos.
Expliquei-lhe que íamos fazer teatro. Ele franziu a testa, como se a palavra fosse uma coisa distante, reservada a outros lugares. Insistiu: queria saber como é que se fazia teatro na rua, a que horas era, se precisava de bilhete. Sorri. Disse-lhe que bastava estar presente.
À hora marcada, lá estava o Rafael sentado na bancada improvisada, de olhar firme e corpo inquieto, como quem espera um milagre. Quando a comédia começou, mais falada com o corpo do que com a voz, os seus olhos abriram-se de espanto. Primeiro, um sorriso tímido, quase escondido. Depois, uma gargalhada solta. E logo outra, mais forte. O corpo dele abanava de riso, e os olhos, esses, brilhavam como duas pequenas luas. Era como se estivesse a descobrir que também ele tinha direito a esse encanto: que a beleza e a imaginação não eram privilégio de outros, mas podiam nascer também no seu bairro, ali, diante dele.
O bairro, tantas vezes cinzento, pintava-se agora de cores invisíveis. A rua tornara-se palco, e o Rafael descobria que o riso também lhe pertencia.
As 𝗚𝗔𝗥𝗚𝗔𝗟𝗛𝗔𝗗𝗔𝗦 𝗡𝗔 𝗟𝗨𝗔, este certame de teatro e comicidade que insiste em levar espetáculos a lugares improváveis, tinham cumprido o seu papel. Não deram apenas teatro: ofereceram justiça, repararam desigualdades, semearam esperança. Porque o acesso à arte não é luxo — é direito. E cada Rafael que se senta pela primeira vez diante da magia do teatro é a prova disso.
Voltei a olhar para ele no fim da peça. Ele não se levantou logo. Ficou parado, ainda com o sorriso colado ao rosto, como quem guarda para dentro aquele momento para que nunca desapareça.
Talvez um dia o Rafael conte que a sua primeira viagem ao teatro aconteceu ali mesmo, no coração do bairro, debaixo da lua.
E eu, hoje, ao olhar para ele, tive uma certeza: há crianças que precisam apenas de um espetáculo para descobrirem que também têm direito à beleza.
F.d’O.
